No dia 27 de março de 2019, os corredores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram ocupados por mulheres e homens com pinturas corporais coloridas e vibrantes, adornos recheados de simbologias ancestrais e expressões faciais de quem buscava justiça e paz para o seu povo. Eram indígenas da etnia Pataxó, que se deslocaram da Bahia para Brasília em razão de um julgamento na Primeira Seção que, naquele dia, decidiria sobre o prosseguimento de processo administrativo para ampliação do território indígena de Barra Velha.

Lado a lado com homens de terno e gravata, o povo Pataxó ouviu o órgão julgador se manifestar no sentido de que, como não foram realizados estudos técnicos detalhados sobre a efetiva área historicamente ocupada pelos indígenas, havia vício insanável no processo originário de delimitação do território. Por consequência, os ministros entenderam – como esperavam os Pataxó – que era o caso de dar continuidade ao processo no Ministério da Justiça para a revisão dos limites da terra indígena.

Leia também: Terra e luta, passado e futuro: a decisão do STJ sobre a demarcação do território pataxó

Aquela tarde de março foi memorável tanto para a corte quanto para os indígenas, mas não se tratou de um evento isolado. O Tribunal da Cidadania é palco de constantes debates a respeito dos povos originários, não apenas em nível nacional, mas também internacional: no ano passado, o STJ recebeu sessões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que se reuniu em audiências públicas para tratar, entre outros casos, do conflito sobre o direito de isolamento de um povo indígena do Equador.

Essa condição do STJ como espaço de reflexão sobre direitos dos povos originários será reavivada a partir desta segunda-feira (17), com a realização do simpósio internacional Povos Indígenas: Natureza e Justiça e a abertura da exposição do fotógrafo Sebastião Salgado sobre os riscos aos quais estão submetidos os indígenas e as suas terras, sobretudo na Amazônia Legal.

No campo jurisprudencial, a corte tem construído uma série de decisões relativas aos direitos indígenas. Várias delas foram apresentadas em uma reportagem de 2017, e as mais recentes são objeto desta nova matéria, ao longo da qual o leitor poderá conhecer um pouco sobre os grupos originários interessados em cada caso (as fotos que acompanham o texto mostram osrnrepresentantes do povo Pataxó que vieram ao STJ naquele 27 de março de 2019).

Justiça pode determinar ao Executivo que adote medidas em favor dos indígenas

Em 2022, a Primeira Turma considerou válido que o Judiciário, diante de demora injustificável, determine ao Poder Executivo a adoção das medidas necessárias para a concretização de direitos constitucionais dos povos indígenas (REsp 1.623.873).

O precedente foi fixado em ação na qual a União e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) foram condenadas a concluir, em prazo determinado, o processo administrativo para a destinação de terras ao povo indígena Fulkaxó, em razão da impossibilidade de convivência pacífica com a etnia Kariri-Xocó – da qual o primeiro grupo é derivado.

Para a União e a Funai, não haveria demora da administração pública na aquisição de terras para acomodar a comunidade Fulkaxó em nova reserva, e a animosidade existente entre as tribos não seria suficiente para justificar a intervenção judicial.

Relator do caso no STJ, o ministro Gurgel de Faria observou que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) considerou o conflito entre os grupos indígenas irreversível, tendo sido constatados episódios de discriminação e ameaças de morte entre eles.

Segundo o ministro, quando estiver configurada a hipótese de injustificável inércia estatal e não houver comprovação da incapacidade econômico-financeira do ente público para solucionar o conflito, o Judiciário poderá determinar que o Executivo promova as medidas necessárias ao cumprimento dos direitos e das garantias fundamentais dos indígenas, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição.

“Embora se reconheça a complexidade do procedimento de criação de reservas indígenas, a fixação de prazo pelo Poder Judiciário justifica-se pela urgência da solução dos conflitos e pela demora da administração pública na conclusão do processo administrativo em apreço, instaurado há anos”, declarou Gurgel de Faria.

MPF pode pedir indenização por falhas médicas que causaram morte de bebê em aldeia

Dois precedentes recentes analisaram a legitimidade do Ministério Público Federal (MPF) em questões judiciais sobre indígenas. No primeiro deles (AREsp 1.688.809), a Segunda Turma considerou o MPF parte legítima para buscar indenização por danos coletivos e individuais após a morte de um bebê indígena, decorrente de supostas falhas na prestação de serviço médico em Mato Grosso do Sul.

A criança, de um ano e 11 meses, pertencia à etnia Ofayé-Xavante, e o óbito teria ocorrido por problemas no sistema de atenção à saúde indígena na área onde está localizada a aldeia. Segundo os autos, mesmo com evidências de que ele tinha peso abaixo do normal para a idade, o hospital – credenciado pelo SUS – teria dado alta para o bebê, que morreu oito dias depois. 

Para o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a legitimidade para requerer as indenizações nesse caso não seria do Ministério Público, mas, sim, da Defensoria Pública.

A ministra Assusete Magalhães, relatora no STJ, lembrou que a Constituição Federal reconhece a situação de vulnerabilidade dos povos originários, motivo pelo qual o artigo 35 da Lei Complementar 75/1993 confere legitimidade ao MPF para agir em sua defesa.

No caso analisado, a relatora ainda ressaltou que a Defensoria Pública que atendia a região da tribo Ofayé-Xavante atuava apenas na Justiça estadual.

“Trata-se, no caso, de atuação do Ministério Público Federal para a defesa de direitos e interesses de relevância social, vale dizer, o direito à saúde e à boa prestação de serviços de saúde aos índios e à comunidade indígena – de cuja alegada deficiência teria decorrido a morte da criança indígena –, bem como o direito de acesso à Justiça pelos índios e pela sua comunidade, em região na qual o acórdão recorrido reconhece ‘notória precariedade do acesso à Justiça'”, ressaltou.

Como consequência, tendo em vista a relevância social do tema e a vulnerabilidade dessas populações, a ministra Assusete entendeu, em razão da situação peculiar do caso, não haver impedimento para que o MPF defendesse os interesses individuais dos indígenas.

MPF é parte legítima para defender comunidade ameaçada por exploração sexual

No segundo caso, que tramitou em segredo judicial, a Terceira Turma reconheceu a possibilidade de o MPF ajuizar ação civil pública para a responsabilização de pessoas supostamente envolvidas numa rede de exploração sexual de adolescentes indígenas no Amazonas. Segundo os réus, não seria legítima a participação do MP no caso, ante a alegação de que não houve danos à coletividade indígena.

Relator do recurso especial, o ministro Marco Aurélio Bellizze enfatizou que a ação civil pública buscava a proteção de toda a comunidade indígena, marcada por uma situação de vulnerabilidade socioeconômica e por violações de direitos indisponíveis, especialmente no tocante à dignidade da pessoa humana e à dignidade sexual de suas jovens.    

“Sendo assim, vê-se que a pretensão inicial está intimamente ligada às funções constitucionais do Ministério Público. Logo, sustentar que o caso narrado na exordial não abarcaria direitos individuais indisponíveis seria o mesmo que negar a dignidade da pessoa humana às populações indígenas, marginalizando ainda mais uma minoria que já sofre com sua estigmatização”, afirmou.

De acordo com o ministro, mesmo que se considerasse a “remota hipótese” de que os direitos discutidos na ação fossem disponíveis, a legitimidade ativa do MPF deveria ser reconhecida em razão da existência de interesse de larga abrangência e grande repercussão nacional, pois o tema interessava não só à comunidade indígena individualmente considerada, mas a toda a coletividade da região, “que também é afetada pelos efeitos degradantes da exploração sexual de jovens indígenas”.

Intervenção da Funai é obrigatória na adoção de menor de origem indígena

Em outro processo que também tramitou em segredo, a Terceira Turma considerou obrigatória a participação da Funai em ações de destituição do poder familiar e adoção que envolvem filhos de pais de origem indígena.

Segundo a ministra Nancy Andrighi, embora o artigo 28, parágrafo 6º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) disponha sobre a colocação de criança ou adolescente indígena em família substituta, a regra é plenamente aplicável aos filhos de pais de origem indígena, devendo ser respeitada também nas ações de destituição de poder familiar e adoção.

O caso analisado pela turma julgadora dizia respeito a uma mãe de origem indígena envolvida com prostituição, alcoolismo e uso de drogas, a qual vivia na sociedade urbana com suas filhas. O Ministério Público estadual moveu a ação de destituição do poder familiar, e as menores foram colocadas em acolhimento institucional para adoção. 

De acordo com a relatora, nas ações de destituição do poder familiar para posterior adoção, devem ser respeitadas a identidade social e cultural dos povos indígenas, bem como seus costumes e suas tradições, desde que sejam compatíveis com a Constituição Federal e com o ECA. Assim, apontou, a colocação dos menores em outra família deve ocorrer, de forma prioritária, em sua comunidade de origem ou dentro da mesma etnia.

“Por se tratar de órgão especializado, é a Funai que reúne as melhores condições de avaliar a situação do menor de origem indígena, não apenas à luz dos padrões de adequação da sociedade em geral, mas, sobretudo, a partir das especificidades de sua própria cultura”, declarou Nancy Andrighi.

“Além de oferecer proteção efetiva aos menores de origem indígena, reconhecendo-se a existência de uma série de vulnerabilidades dessa parcela populacional, não se pode olvidar que o ECA também pretende adequadamente tutelar a comunidade e a cultura indígenas, de modo a minimizar a sua assimilação ou absorção pela cultura dominante”, completou.

Para a ministra, a obrigatoriedade da intervenção da Funai não pode ser vista como formalismo exagerado, pois sua participação é o que legitima a adoção do menor indígena, na medida em que se pressupõe que haverá mais chances de serem atendidos os interesses do adotando. Sem a participação da fundação, segundo ela, há a presunção de efetivo prejuízo à criança ou ao adolescente, a qual “somente se pode afastar em hipóteses excepcionalíssimas”.

Devido à gravidade da situação das menores e ao rompimento dos vínculos com a mãe biológica, a Terceira Turma não anulou a ação de destituição do poder familiar, apesar da ausência da Funai, mas exigiu a intervenção do órgão em qualquer novo procedimento relacionado às menores, inclusive no processo de adoção.

Certificação de georreferenciamento pode ser negada se área conflitar com reserva

Ao julgar o AREsp 1.640.785, a Segunda Turma considerou inviável a certificação de georreferenciamento caso seja identificada sobreposição da propriedade rural com área indígena, mesmo que o processo de demarcação ainda não tenha sido concluído.

O caso foi discutido no âmbito de mandado de segurança com o qual os proprietários de uma fazenda buscavam, junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a certificação do georreferenciamento, em cumprimento à Lei 10.267/2001. O Incra havia negado a certificação porque a Funai indicou que parte da fazenda estaria sobreposta à reserva indígena Taunay/Ipegue, ocupada tradicionalmente pelo povo Terena.

A decisão do Incra foi revertida em primeira instância, com sentença confirmada pelo TRF3. Para o tribunal, enquanto não houvesse a conclusão da demarcação do território indígena, a propriedade do terreno seria do particular, nos termos do artigo 5º, inciso XXII, da Constituição.

O ministro Francisco Falcão lembrou que o procedimento de georreferenciamento integra o registro, e dele resultam consequências, pois a certificação do memorial descritivo do imóvel consta da respectiva matrícula.

De acordo com o relator, o Incra acertou ao negar a certificação em razão da informação fornecida pela Funai de que havia sobreposição da área com reserva indígena. Falcão destacou que há presunção de veracidade dos estudos elaborados pela Funai, de modo que não é exigida a finalização da demarcação do território indígena para que essa condição seja considerada em atos que envolvam imóveis de particulares.

No caso dos autos, Francisco Falcão ainda ressaltou que o Ministério da Justiça já havia declarado que a área discutida era de posse permanente do grupo Terena, indicando que as terras, de fato, poderiam ser de propriedade da União. 

“As terras ocupadas pelos indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (parágrafo 4º do artigo 231 da Constituição Federal). E não pode a administração ser compelida a certificar situação imobiliária em descumprimento da lei e da Constituição, pois são nulos os títulos particulares sobre terras indígenas, a teor do parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal“, finalizou o ministro.

Fórum criado pelo CNJ deve modernizar atuação do Judiciário em questões indígenas

Nos próximos anos, a atuação jurisdicional voltada para a preservação dos direitos indígenas deve ser fortalecida em todas as instâncias do Poder Judiciário. O motivo é a instalação, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas aos Povos Indígenas (Fonepi), cujo objetivo principal é propor medidas para o aperfeiçoamento do sistema judicial nesse tema.

De acordo com a Resolução 453/2022 do CNJ, a criação do Fonepi levou em consideração, entre outros fatos, que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabeleceu que os Estados devem proteger esses direitos e adotar procedimentos justos para decidir as controvérsias tanto com o poder público quanto com particulares.

Entre as atribuições do fórum – composto por instituições do sistema de Justiça e também por entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) –, estão o levantamento de inquéritos e ações judiciais que envolvam pessoas e comunidades indígenas e a apresentação de sugestões para o CNJ editar normativos visando a modernização de rotinas e a estruturação dos órgãos do Poder Judiciário.

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